13. Por sua natureza, a revelação espírita tem duplo
caráter: participa ao mesmo tempo da revelação divina e da revelação científica.
Participa da primeira, porque foi providencial o seu aparecimento e não o
resultado da iniciativa, nem de um desígnio premeditado do homem; porque os pontos
fundamentais da doutrina provêm do ensino que deram os Espíritos encarregados
por Deus de esclarecer os homens acerca de coisas que eles ignoravam, que não
podiam aprender por si mesmos e que lhes importa conhecer, hoje que estão aptos
a compreendê-las. Participa da segunda, por não ser esse ensino privilégio de
indivíduo algum, mas ministrado a todos do mesmo modo; por não serem os que o
transmitem e os que o recebem seres passivos, dispensados
do trabalho da observação e da pesquisa, por não renunciarem ao raciocínio e ao
livre-arbítrio; porque não lhes é interdito o exame, mas, ao contrário,
recomendado; enfim, porque a doutrina não foi ditada completa, nem imposta à crença cega; porque é deduzida, pelo trabalho do homem, da observação dos
fatos que os Espíritos lhe põem sob os olhos e das instruções que lhe dão,
instruções que ele estuda, comenta, compara, a fim de tirar ele próprio as
ilações e aplicações. Numa palavra, o que caracteriza a revelação espírita é o ser divina a sua origem e da iniciativa dos Espíritos, sendo a sua
elaboração fruto do trabalho do homem.
14. Como meio de elaboração, o Espiritismo procede
exatamente da mesma forma que as ciências positivas, aplicando o método
experimental. Fatos novos se apresentam, que não podem ser explicados pelas leis
conhecidas; ele os observa, compara, analisa e, remontando dos efeitos às
causas, chega à lei que os rege; depois, deduz-lhes as consequências e busca as
aplicações úteis. Não estabeleceu nenhuma teoria preconcebida; assim, não apresentou como hipóteses a existência e a intervenção
dos Espíritos, nem o perispírito, nem a reencarnação, nem qualquer dos
princípios da doutrina; concluiu pela existência dos Espíritos, quando essa
existência ressaltou evidente da observação dos fatos, procedendo de igual
maneira quanto aos outros princípios. Não foram os fatos que vieram a posteriori confirmar a teoria: a teoria é que veio subseqüentemente
explicar e resumir os fatos. É, pois, rigorosamente exato dizer-se que o
Espiritismo é uma ciência de observação e não produto da imaginação. As ciências
só fizeram progressos importantes depois que seus estudos se basearam sobre o método
experimental; até então, acreditou-se que esse método também só era aplicável à
matéria, ao passo que o é também às coisas metafísicas.
15. Citemos um exemplo. Passa-se no mundo dos
Espíritos um fato muito singular, de que seguramente ninguém houvera
suspeitado: o de haver Espíritos que se não consideram mortos. Pois bem, os Espíritos
superiores, que conhecem perfeitamente esse fato, não vieram dizer
antecipadamente: “Há Espíritos que julgam viver ainda a vida terrestre, que
conservam seus gostos, costumes e instintos.” Provocaram a manifestação de
Espíritos desta categoria para que os observássemos. Tendo-se visto Espíritos incertos
quanto ao seu estado, ou afirmando ainda serem deste mundo, julgando-se
aplicados às suas ocupações ordinárias, deduziu-se a regra. A multiplicidade de
fatos análogos demonstrou que o caso não era excepcional, que constituía uma
das fases da vida espírita; pode-se então estudar todas as variedades e as
causas de tão singular ilusão, reconhecer que tal situação é sobretudo própria
de Espíritos pouco adiantados moralmente e peculiar a certos gêneros de morte;
que é temporária, podendo, todavia, durar semanas, meses e anos. Foi assim que
a teoria nasceu da observação. O mesmo se deu com relação a todos os outros princípios da
doutrina.
16. Assim como a Ciência propriamente dita tem por
objeto o estudo das leis do princípio material, o objeto especial do Espiritismo
é o conhecimento das leis do princípio espiritual.
Ora, como este último princípio é uma das forças da Natureza, a
reagir incessantemente sobre o princípio material e reciprocamente, segue-se
que o conhecimento de um não pode estar completo sem o conhecimento do outro. O Espiritismo e a Ciência se completam reciprocamente; a Ciência, sem o Espiritismo, se acha na impossibilidade de explicar
certos fenômenos só pelas leis da matéria; ao Espiritismo, sem a Ciência, faltariam
apoio e comprovação. O estudo das leis da matéria tinha que preceder o da
espiritualidade, porque a matéria é que primeiro fere os sentidos.
Se o Espiritismo tivesse vindo antes das descobertas científicas,
teria abortado, como tudo quanto surge antes do tempo.
17. Todas as ciências se encadeiam e sucedem numa
ordem racional; nascem umas das outras, à proporção que acham ponto de apoio nas idéias e conhecimentos anteriores.
A Astronomia, uma das primeiras cultivadas, conservou os erros
da infância, até ao momento em que a Física veio revelar a lei das forças dos agentes naturais; a Química, nada
podendo sem a Física, teve de acompanhá-la de perto, para depois marcharem
ambas de acordo, amparando-se uma à outra. A Anatomia, a Fisiologia, a Zoologia,
a Botânica, a Mineralogia, só se tornaram ciências sérias com o auxílio das
luzes que lhes trouxeram a Física e a Química.
À Geologia nascida ontem, sem a Astronomia, a Física, a Química
e todas as outras, teriam faltado elementos de vitalidade; ela só podia vir
depois daquelas.
18. A Ciência moderna abandonou os quatro elementos primitivos
dos antigos e, de observação em observação, chegou à concepção de um só elemento gerador de todas as transformações da matéria; mas, a matéria, por si
só, é inerte; carecendo de vida, de pensamento, de sentimento, precisa
estar unida ao princípio espiritual. O Espiritismo não descobriu, nem inventou
este princípio; mas, foi o primeiro a demonstrar-lhe, por provas inconcussas, a
existência; estudou-o, analisou-o e tornou-lhe evidente a ação.
Ao elemento material, juntou ele o elemento espiritual. Elemento material e elemento espiritual, esses os dois princípios, as duas forças vivas da Natureza. Pela união
indissolúvel deles, facilmente se explica uma multidão de fatos até então inexplicáveis.1
O Espiritismo, tendo por objeto o estudo de um dos elementos
constitutivos do Universo, toca forçosamente na maior parte das ciências; só
podia, portanto, vir depois da elaboração delas; nasceu pela força mesma das
coisas, pela impossibilidade de tudo se explicar com o auxílio apenas das leis
da matéria.
19. Acusam-no de parentesco com a magia e a
feitiçaria; porém, esquecem que a Astronomia tem por irmã mais velha a
Astrologia judiciária, ainda não muito distante de nós; que a Química é filha
da Alquimia, com a qual nenhum homem sensato ousaria hoje ocupar-se. Ninguém
nega,
1 A palavra elemento não é empregada
aqui no sentido de corpo
simples, elementar, de moléculas primitivas, mas no de parte constitutiva
de um todo.
Neste sentido, pode dizer-se que o elemento espiritual tem parte ativa na
economia do Universo, como se diz que o elemento civil e o elemento militar figuram no cálculo de uma população;
que o elemento
religioso entra
na educação; ou que na Argélia
existem o elemento
árabe e o
elemento
europeu.
entretanto, que na Astrologia e na Alquimia estivesse o gérmen
das verdades de que saíram as ciências atuais. Apesar das suas ridículas fórmulas, a Alquimia encaminhou a
descoberta dos corpos simples e da lei das afinidades.
A Astrologia se apoiava na posição e no movimento dos astros,
que ela estudara; mas, na ignorância das verdadeiras leis que regem o mecanismo
do Universo, os astros eram, para o vulgo, seres misteriosos, aos quais a
superstição atribuía uma influência moral e um sentido revelador. Quando
Galileu, Newton e Kepler tornaram conhecidas essas leis, quando o telescópio
rasgou o véu e mergulhou nas profundezas do espaço um olhar que algumas criaturas
acharam indiscreto, os planetas apareceram como simples mundos semelhantes ao
nosso e todo o castelo do maravilhoso desmoronou.
O mesmo se dá com o Espiritismo, relativamente à magia e à
feitiçaria, que se apoiavam também na manifestação dos Espíritos, como a
Astrologia no movimento dos astros; mas, ignorantes das leis que regem o mundo
espiritual, misturavam, com essas relações, práticas e crenças ridículas, com
as quais o moderno Espiritismo, fruto da experiência e da observação, acabou.
Certamente, a distância que separa o Espiritismo da magia e da feitiçaria é maior
do que a que existe entre a Astronomia e a Astrologia, a Química e a Alquimia.
Confundi-las é provar que de nenhuma se sabe patavina.
20. O simples fato de poder o homem comunicar-se com
os seres do mundo espiritual traz conseqüências incalculáveis da mais alta
gravidade; é todo um mundo novo que se nos revela e que tem tanto mais
importância, quanto a ele hão de voltar todos os homens, sem exceção.
O conhecimento de tal fato não pode deixar de acarretar, generalizando-se,
profunda modificação nos costumes, caráter, hábitos, assim como nas crenças que
tão grande influência exerceu sobre as relações sociais. É uma revolução completa
a operar-se nas idéias, revolução tanto maior, tanto mais poderosa, quanto não
se circunscreve a um povo, nem a uma casta, visto que atinge simultaneamente,
pelo coração, todas as classes, todas as nacionalidades, todos os cultos.
Razão há, pois, para que o Espiritismo seja considerado a
terceira das grandes revelações. Vejamos em que essas revelações diferem e qual
o laço que as liga entre si.
21. Moisés, como profeta, revelou aos homens a
existência de um Deus único, Soberano Senhor e Orientador de todas as coisas;
promulgou a lei do Sinai e lançou as bases da verdadeira fé. Como homem, foi o
legislador do povo pelo qual essa primitiva fé, purificando-se, havia de
espalhar-se por sobre a Terra.
22. O Cristo, tomando da antiga lei o que é eterno e
divino e rejeitando o que era transitório, puramente disciplinar e de
concepção humana, acrescentou a revelação da vida futura, de que Moisés não falara, assim como a das penas e recompensas
que aguardam o homem, depois da morte. (Vede: Revue Spirite, 1861, páginas 90 e 280.)
23. A parte mais importante da revelação do Cristo,
no sentido de fonte primária, de pedra angular de toda a sua doutrina é o ponto
de vista inteiramente novo sob que considera ele a Divindade. Esta já não é o
Deus terrível, ciumento, vingativo, de Moisés; o Deus cruel e implacável, que
rega a terra com o sangue humano, que ordena o massacre e o extermínio dos
povos, sem excetuar as mulheres, as crianças e os velhos, e que castiga aqueles
que poupam as vítimas; já não é o Deus injusto, que pune um povo inteiro pela
falta do seu chefe, que se vinga do culpado na pessoa do inocente, que fere os filhos
pelas faltas dos pais; mas, um Deus clemente, soberanamente justo e bom, cheio
de mansidão e misericórdia, que perdoa ao pecador arrependido e dá a cada um segundo as suas obras. Já não é o Deus de um único povo privilegiado, o Deus dos exércitos, presidindo aos combates para sustentar a sua própria causa contra
o Deus dos outros povos; mas, o Pai comum do gênero humano, que estende a sua
proteção por sobre todos os seus filhos e os chama todos a si; já não é o Deus que
recompensa e pune só pelos bens da Terra, que faz consistir a glória e a felicidade
na escravidão dos povos rivais e na multiplicidade da progenitura, mas, sim, um
Deus que diz aos homens: “A vossa verdadeira pátria não é neste mundo, mas no
reino celestial, lá onde os humildes de coração serão elevados e os orgulhosos
serão humilhados.” Já não é o Deus que faz da vingança uma virtude e ordena se
retribua olho por olho, dente por dente; mas, o Deus de misericórdia, que diz:
“Perdoai as ofensas, se quereis ser perdoados; fazei o bem em troca do mal; não
façais o que não quereis vos façam.” Já não é o Deus mesquinho e meticuloso,
que impõe, sob as mais rigorosas penas, o modo como quer ser adorado, que se
ofende pela inobservância de uma fórmula; mas, o Deus grande, que vê o pensamento
e que se não honra com a forma. Enfim, já não é o Deus que quer ser temido, mas
o Deus que quer ser amado.
24. Sendo Deus o eixo de todas as crenças religiosas
e o objetivo de todos os cultos, o caráter de todas as religiões é conforme à idéia que elas dão de Deus. As religiões que fazem de Deus um ser vingativo e cruel julgam
honrá-lo com atos de crueldade, com fogueiras e torturas; as que têm um Deus
parcial e cioso são intolerantes e mais ou menos meticulosas na forma, por crerem-no
mais ou menos contaminado das fraquezas e ninharias humanas.
25. Toda a doutrina do Cristo se funda no caráter
que ele atribui à Divindade. Com um Deus imparcial, soberanamente justo, bom e
misericordioso, ele fez do amor de Deus e da caridade para com o próximo a
condição indeclinável da salvação, dizendo: Amai a Deus sobre todas as coisas e o vosso próximo como a vós mesmos; nisto estão
toda a lei e os profetas; não existe outra lei. Sobre esta crença, assentou o princípio da igualdade dos
homens perante Deus e o da fraternidade universal. Mas, fora possível amar o
Deus de Moisés? Não; só se podia temê-lo.
A revelação dos verdadeiros atributos da Divindade, de par com a
da imortalidade da alma e da vida futura, modificava profundamente as relações
mútuas dos homens, impunha-lhes novas obrigações, fazia-os encarar a vida presente
sob outro aspecto e tinha, por isso mesmo, de reagir contra os costumes e as
relações sociais. É esse incontestavelmente, por suas conseqüências, o ponto
capital da revelação do Cristo, cuja importância não foi compreendida suficientemente
e, contrista dizê-lo, é também o ponto de
que mais a Humanidade se tem afastado, que mais há desconhecido na
interpretação dos seus ensinos.
26. Entretanto, o Cristo acrescenta: “Muitas das
coisas que vos digo ainda não as compreendeis e muitas outras teria a dizer,
que não compreenderíeis; por isso é que vos falo por parábolas; mais tarde,
porém, enviar-vos-ei o Consolador, o Espírito de
Verdade, que restabelecerá todas as coisas e vo-las explicará todas.” (S. João, 14,16; S. Mateus, 17.) Se o Cristo não disse tudo quanto poderia dizer, é que julgou
conveniente deixar certas verdades na sombra, até que os homens chegassem ao
estado de compreendê-las.
Como ele próprio o confessou, seu ensino era incompleto, pois
anunciava a vinda daquele que o completaria; previra, pois, que suas palavras não seriam bem interpretadas, e que os
homens se desviariam do seu ensino; em suma, que desfariam o que ele fez, uma
vez que todas as coisas hão de ser restabelecidas: ora, só se restabelece aquilo que foi
desfeito.
27. Por que chama ele Consolador ao novo
messias? Este nome, significativo e sem ambigüidade, encerra toda uma revelação.
Assim, ele previa que os homens teriam necessidade de consolações, o que implica
a insuficiência daquelas que eles achariam na crença que iam fundar. Talvez
nunca o Cristo fosse tão claro, tão explícito, como nestas últimas palavras, às
quais poucas pessoas deram atenção bastante, provavelmente porque evitaram
esclarecê-las e aprofundar- lhes o sentido profético.
28. Se o Cristo não pôde desenvolver o seu ensino de
maneira completa, é que faltavam aos homens conhecimentos que eles só podiam
adquirir com o tempo e sem os quais não o compreenderiam; há muitas coisas que
teriam parecido absurdas no estado dos conhecimentos de então. Completar o seu
ensino deve entender-se no sentido de explicar e desenvolver, não no de ajuntar-lhe
verdades novas, porque tudo nele se encontra em estado de gérmen, faltando-lhe
só a chave para se apreender o sentido das palavras.
29. Mas, quem toma a liberdade de interpretar as
Escrituras Sagradas? Quem tem esse direito? Quem possui as necessárias luzes,
senão os teólogos? Quem o ousa? Primeiro, a Ciência, que a ninguém pede
permissão para dar a conhecer as leis da Natureza e que salta sobre os erros e
os preconceitos. –– Quem tem esse direito? Neste século de emancipação
intelectual e de liberdade de consciência, o direito de exame pertence a todos
e as Escrituras não são mais a arca santa na qual ninguém se atreveria a tocar com
a ponta do dedo, sem correr o risco de ser fulminado. Quanto às luzes especiais, necessárias, sem contestar as dos
teólogos, por mais esclarecidos que fossem os da Idade Média, e, em particular,
os Pais da Igreja, eles, contudo, não o eram bastante para não condenarem como
heresia o movimento da Terra e a crença nos antípodas. Mesmo sem ir tão longe,
os teólogos dos nossos dias não lançaram anátema à teoria dos períodos de
formação da Terra?
Os homens só puderam explicar as Escrituras com o auxílio do que
sabiam, das noções falsas ou incompletas que tinham sobre as leis da Natureza,
mais tarde reveladas pela Ciência. Eis por que os próprios teólogos, de muito boa-fé,
se enganaram sobre o sentido de certas palavras e fatos do Evangelho. Querendo
a todo custo encontrar nele a confirmação de uma idéia preconcebida, giraram
sempre no mesmo círculo, sem abandonar o seu ponto de vista, de modo que só
viam o que queriam ver. Por muito instruídos que fossem, eles não podiam compreender
causas dependentes de leis que lhes eram desconhecidas.
Mas, quem julgará das interpretações diversas e muitas vezes
contraditórias, fora do campo da teologia? O futuro, a lógica e o bom-senso. Os homens, cada vez mais esclarecidos, à
medida que novos fatos e novas leis se forem revelando, saberão separar da realidade
os sistemas utópicos. Ora, as ciências tornam conhecidas algumas leis; o Espiritismo
revela outras; todas são indispensáveis à inteligência dos Textos Sagrados de
todas as religiões, desde Confúcio e Buda até o Cristianismo. Quanto à
teologia, essa não poderá judiciosamente alegar contradições da Ciência, visto
como também ela nem sempre está de acordo consigo mesma.
Do livro: “A
GÊNESE” OS MILAGRES E AS PREDIÇÕES SEGUNDO O ESPIRITISMO – POR ALLAN KARDEC - Editora Feb
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