Um médium do Havre evocou o Espírito de pessoa dele conhecida, que
respondeu: — “Quero comunicar-me, porém não posso vencer o obstáculo existente
entre nós. Sou forçado a deixar que se aproximem estes infelizes sofredores.”
Seguiu-se então a seguinte comunicação espontânea: “Estou num
medonho abismo! Auxilia-me... Oh! Meu Deus! quem me tirará deste abismo? Quem
socorrerá com mão piedosa o infeliz tragado pelas ondas? Por toda parte o marulho
das vagas, e nem uma palavra amiga que me console e ajude neste momento supremo.
Entretanto, esta noite profunda é bem a morte com seus horrores, quando eu não
quero morrer!... Oh! meu Deus! não é a morte futura, é a passada! Estou para
sempre separado dos que me são caros... Vejo o meu corpo, e o que há pouco
sentia era apenas a lembrança da angustiosa separação... Tende piedade de mim,
vós que conheceis o meu sofrimento; orai por mim, pois não quero mais sentir as
lacerações da agonia, como tem acontecido desde a noite fatal!... É essa, no
entanto, a punição, bem a pressinto... Conjuro-vos a orar!... Oh! o mar... o
frio... vou ser tragado pelas ondas!... Socorro!... Tende piedade; não me
repilais! Nós nos salvaremos os dois sobre esta tábua!... Oh! afogo-me! As
vagas vão tragar-me sem que aos meus reste o consolo de me tornarem a ver...
Mas não! que vejo? meu corpo balouçado pelas ondas... As preces de minha mãe
serão ouvidas... Pobre mãe! se ela pudesse supor seu filho tão miserável como
realmente o é, decerto pediria mais; acredita, porém, que a morte santificou o
passado e chora-me como mártir e não como infeliz castigado!... Oh! Vós que o
sabeis, sereis implacáveis? Não, certo intercedereis por mim.
François Bertin.” 1
Desconhecido inteiramente esse nome, não sugeria sequer à
memória do médium uma vaga lembrança, pelo que supôs fosse de algum desgraçado
náufrago que se lhe viesse manifestar espontaneamente, como sucedia várias vezes.
Mais tarde soube ser, efetivamente, o nome de uma das vítimas da grande catástrofe
marítima ocorrida nessas paragens a 2 de dezembro de 1863. A comunicação foi
dada a 8 do mesmo mês, 6 dias, portanto, depois do sinistro. O indivíduo
perecera fazendo tentativas inauditas para salvar a equipagem e no momento em
que se julgava ao abrigo da morte. Não tendo qualquer parentesco com o médium, nem
mesmo conhecimento, por que se teria manifestado a este em vez de o fazer a qualquer
membro da família? É que os Espíritos não encontram em todas as pessoas as
condições fluídicas imprescindíveis à manifestação. Este, na perturbação em que
estava, nem mesmo tinha a liberdade da escolha, sendo conduzido instintiva e
atrativamente para este médium, dotado, ao que parece, de aptidão especial para
as comunicações deste gênero. Também é de supor que pressentisse uma simpatia
particular, como outros a encontraram em idênticas circunstâncias. A família,
estranha ao Espiritismo, talvez infensa mesmo a esta crença, não teria acolhido
a manifestação como esse médium.
1 Nota da Editora (FEB) à 21ª edição, em 1973: O Espírito, na página anterior, foi
designado pelo nome Ferdinand, exatamente
como no original. Consultamos diversas edições francesas (páginas 324/ 5),
inclusive a 4ª, de 1869.
Posto que a morte remontasse a alguns dias, o Espírito lhe
experimentava ainda todas as angústias. Evidente, portanto, que não tinha consciência
da situação; acreditava-se vivo, lutando com as ondas, mas ao mesmo tempo se
referindo ao corpo como se dele estivesse separado; grita por socorro, diz que
não quer morrer e fala logo após da causa da sua morte, reconhecendo nela um
castigo.
Toda essa incoerência denota a confusão das idéias, fato comum
em quase todas as mortes violentas.
Dois meses mais tarde, a 2 de fevereiro de 1864, o Espírito de
novo se comunicou espontaneamente pelo mesmo médium, dizendo-lhe o seguinte:
“A piedade que tivestes dos meus tão horríveis sofrimentos aliviou-me.
Compreendo a esperança, entrevejo o perdão, mas depois do castigo da falta
cometida. Sofro continuamente, e, se por momentos permite Deus que eu entreveja
o fim da minha desventura, devo-o às preces de caridosas almas apiedadas da
minha situação. Oh! esperança, raio celeste, quão bendita és quando te sinto
despontar-me na alma!... Mas, oh! o abismo escancara-se, o terror e o
sofrimento absorvem o pensamento de misericórdia. A noite, sempre a noite!... a
água, o bramir das ondas que me tragaram, são apenas pálida imagem do horror em
que se envolve o meu Espírito... Fico mais calmo quando posso permanecer junto
de vós, pois assim como a confidência de um segredo ao peito amigo nos alivia,
assim a vossa piedade motivada pela confidência da minha penúria, acalma o sofrimento
e dá repouso ao meu Espírito...
“Fazem-me bem as vossas preces, não me as recuseis.
Não quero reapossar-me desse hórrido sonho que se transforma em realidade quando o vejo... Tomai o lápis
mais vezes. Muito me aliviará o comunicar convosco.”
Dias depois, numa reunião espírita em Paris, dirigiram-se a este
Espírito as seguintes perguntas, por ele englobadas numa única comunicação e
mediante outro médium, na forma abaixo. Eis as perguntas:
Quem vos levou a comunicar espontaneamente pelo outro médium? De
que tempo datava a vossa morte quando vos manifestastes?
Quando o fizestes parecíeis duvidar ainda do vosso estado, ao
mesmo tempo que externáveis angústias de uma morte horrível: tendes agora
melhor compreensão dessa situação?
Dissestes positivamente que a vossa morte era uma expiação: podereis
dizer-nos o motivo dessa afirmativa?
Isso constituirá ensinamento para nós e ser-vos-á um alívio. Por
uma confissão sincera fareis jus à misericórdia de Deus, a qual solicitaremos
em nossas preces.
Resposta. — Em primeiro
lugar parece impossível que uma criatura humana possa sofrer tão cruelmente.
Deus! Como é penoso ver-se a gente constantemente envolta nas vagas em fúria,
provando incessante este suplício, este frio glacial que sobe ao estômago e o
constringe! “Mas, de que serve entreter-vos com tais cenas? Não devo eu começar
por obedecer às leis da gratidão, agradecendo-vos a vós todos que vos interessastes
pelos meus tormentos? Perguntastes se me manifestei muito tempo depois da
morte?
“Não posso responder facilmente. Refletindo, avaliareis em que
situação horrível estou ainda. Penso que para junto do médium fui trazido por
força estranha à minha vontade e — coisa inexplicável — servia-me do seu braço
com a mesma facilidade com que me sirvo neste momento do vosso, persuadido de
que ele me pertencesse. Agora experimento mesmo um grande prazer, como que um
alívio particular, que... mas ah! ei-lo que vai cessar. Mas, meu Deus! Terei forças
para fazer a confissão que me cumpre?”
Depois de ser muito animado, o Espírito ajuntou: — “Eu era muito
culpado, e o que mais me tortura é ser tido por mártir, quando em verdade o não
fui... Na precedente existência eu mandara ensacar várias vítimas e atirá-las
ao mar... Orai por mim!”
Comentário de S. Luís a esta comunicação
Esta confissão trará grande alívio ao Espírito, que efetivamente
foi bem culpado! Honrosa, porém, foi a existência que vem de deixar: — era
amado e estimado de seus chefes.
Essa circunstância era o fruto do seu arrependimento e das boas
resoluções que tomou antes de voltar à Terra, onde, tanto quanto fora cruel,
desejara ser humano. O devotamento que demonstrou era uma reparação, sendo-lhe
porém preciso resgatar as passadas faltas por uma expiação final — a da morte
que teve. Ele mesmo quis purificar-se pelo sofrimento das torturas que a outros
infligira, e reparai que uma idéia o persegue: o pesar de ser tido como mártir.
Será tomada em consideração essa humildade. Enfim, ele deixou o caminho da
expiação para entrar no da reabilitação, no qual por vossas preces podereis
sustentá-lo, fazendo que o trilhe a passo mais firme e resoluto.
Do livro: “O Céu E O Inferno” – Allan Kardec – Feb.
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